Nova Cartografia Social Da Amazônia

Informativo PNCSA nº 8 – Nota sobre os projetos de lei sobre patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados


Sheilla Borges Dourado

A regulamentação da Convenção sobre Diversidade Biológica no Brasil, em substituição à Medida Provisória n. 2.186-16/2001 continua provocando debates acirrados à medida que o projeto de lei apresentado pelo Executivo tramita no Senado em regime de urgência, após ter recebido emendas na Câmara dos Deputados. O Projeto de lei na Câmara tramitou sob o número 7735/2014 e no Senado, tornou-se o PL 02/2015. Ambos textos são criticados por movimentos sociais e organizações que defendem direitos de povos e comunidades tradicionais, considerados “detentores” e “provedores” de conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético.

Dentre os questionamentos e indignações, está, em primeiro lugar, o “pecado original” da ausência de participação de representantes desses agentes sociais no processo de construção do texto, ainda no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. As negociações ficaram a cargo dos Ministérios do Meio Ambiente e Ciência e tecnologia, tendo sido bastante representados os interesses dos usuários, as empresas de biotecnologia e os pesquisadores. A facilitação do acesso e do uso de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados por instituições estrangeiras, a definição de procedimentos mais simplificados no processo administrativo de autorização perante o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen) e a formação de cadastro estão entre as medidas que beneficiam diretamente os pesquisadores que se queixavam da burocratização, da lentidão e da inoperância do CGEn.

Os interesses das indústrias que utilizam biotecnologia foram contemplados na forma de isenções, de possibilidades facilitadas de regularização por atos de infração, de possibilidades de negociação de valores de repartição de benefícios, na agilização dos procedimentos de autorização junto ao CGen e na remissão de dívidas pela União. Seguem alguns destaques do PL 02/2015.

Algumas alterações feitas na Câmara dos Deputados

O PL 7735/2014 foi alterado na Câmara dos Deputados no âmbito da Comissão Especial criada para apreciá-lo, que teve como relator o deputado Alceu Moreira (PMDB/RS), integrante da Frente Parlamentar Agropecuária, mais conhecida como “Bancada Ruralista”.

De início, a substituição do termo “povos” por “populações” indígenas, os representantes da bancada ruralista evidenciam a renitência em admitir a autonomia desses grupos sociais, diferenciados em suas organizações sociais, práticas culturais e cosmologias.  O termo “povos” é utilizado em referência aos indígenas, estando consagrado na Convenção 169 da OIT sobre Povos indígenas e Tribais, promulgada no Brasil, e na legislação nacional, a partir da edição do Decreto n. 6040/2000, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. A substituição da expressão “povos indígenas” por “populações indígenas” despolitiza a ideia representada nessa categoria e desprestigia esses agentes sociais equiparados às “populações” nativas de espécies de fauna e flora a que também se referem os projetos de lei.

A categoria “agricultor tradicional” foi acrescentada aos “detentores” de conhecimentos tradicionais, sendo definida como “pessoa natural que utiliza variedades tradicionais locais ou crioulas ou raças localmente adaptadas ou crioulas e mantém e conserva a diversidade genética”. Essa categoria não tem correspondência em outras normas. A lei n. 11.326/2006 traz a definição de “agricultor familiar” no seu artigo 3º.

O direito de participação de povos e comunidades tradicionais

Tanto o PL 7735/2014 quanto o PL 02/2015 apresentam graves restrições ao direito de participação atribuído a povos e comunidades tradicionais pela Convenção sobre Diversidade Biológica e pela Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. A própria elaboração do projeto de lei pelo Poder Executivo, em atendimento à Convenção 169, deveria ter incluído a participação de representantes de povos e comunidades tradicionais, uma vez que se trata de medida legislativa apta a afetar diretamente os seus modos de vida (art. 6º, “a”, da Convenção 169).

O texto apresentado pela Casa Civil atende claramente aos interesses dos setores econômico e acadêmico, tomando como base a experiência obtida nas discussões e soluções delineadas no âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), e negociado principalmente entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Representantes de povos e comunidades tradicionais há muito não marcam presença nas reuniões do Plenário do CGen, espaço político no qual jamais foram admitidos como “pares”, onde não tem a possibilidade de deliberar, e estão restritos ao poder de manifestar sua opinião, mas não de votar.

Tem-se que os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético integram o patrimônio cultural brasileiro e poderão ser depositados em bancos de dados conforme dispuser o CGEn ou legislação específica (art. 8º, § 2º). Os projetos de lei não levam em conta a decisão dos “detentores” de conhecimentos tradicionais associados a respeito da inclusão de informações e dados sobre o seu patrimônio cultural em bancos de dados cujo acesso e uso não podem controlar.

O parágrafo 2º do artigo 9º do PL 02/2015 estabelece que o acesso a conhecimento tradicional associado de origem não identificável independe de consentimento prévio informado. O dispositivo abre uma brecha para o descumprimento do direito  ao consentimento prévio, uma vez que se presume, em absoluto, que os conhecimentos tradicionais são todos compartilhados por diversos “detentores” (art. 24, §5º). Alegando dificuldade ou impossibilidade de identificar a origem do conhecimento tradicional associado, o usuário poderia facilmente se eximir da obrigação de obter o consentimento prévio informado, ou promover uma disputa entre possíveis “provedores” buscando obter as melhores condições para a realização do acesso pretendido.

Na Câmara dos Deputados, o dispositivo proposto pelo Executivo sobre a composição do CGen foi alterado. O PL 7735/2014 delegava ao regulamento dispor sobre a composição e o funcionamento desse conselho (art. 6º, §2º). O PL 02/2015, no entanto, estabelece que órgãos e entidades da administração pública federal comporão até 60% do Plenário, enquanto que a representação da sociedade civil será feita em, no mínimo, 40% dos seus membros (art. 6º).

Repartição de benefícios

 

A proposta para a nova lei é simplificar os procedimentos administrativos no CGen e os cálculos para a repartição de benefícios derivados da exploração econômica de produtos oriundos de acesso a patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados.

Desde o PL 7735/2015, propõe-se exigir a repartição de benefícios apenas sobre a exploração econômica do produto acabado, excluindo a repartição sobre os produtos intermediários (art. 17 do PL 02/2015). Na Câmara dos Deputados foi acrescentado dispositivo relativo à repartição por exploração econômica de atividades agrícolas, definindo que apenas ao último elo da cadeia produtiva é devida a repartição de benefícios (art. 18, §1º).

É feita ainda a distinção entre “detentores” e “provedores” de conhecimentos tradicionais, sendo “provedor” aquele que detém e fornece a informação para o acesso (art. 2º, inc. V, PL 02/2015)). A todos os “detentores” é devida a repartição de benefícios, mas somente os que são “provedores” firmam Acordo de Repartição de Benefícios (art. 24 do PL 02/2015). Fica fixado que os demais “detentores” receberão benefícios monetários por meio do Fundo Nacional para a Repartição de Benefícios (FNRB) correspondente à metade da renda líquida anual definida no artigo 20, ou correspondente a valor inferior, reduzido com base no artigo 21 ou em acordo setorial (art. 24, §§ 2º e 3º).

Representantes dos “detentores” de conhecimentos tradicionais foram excluídos das negociações para a definição das porcentagens de repartição de benefícios em caso de acesso a patrimônio genético e a conhecimento tradicional associado de origem não identificável. Além das porcentagens previstas nos projetos de lei, estabelecem os artigos 20, 21 e 25, §3º do PL 02/2015 que decisões referentes a valores de repartição de benefícios, podem ser negociadas em acordos setoriais, dos quais, no entanto, os representantes de povos e comunidades tradicionais não participam. Os acordos setoriais são atos de natureza contratual firmados entre o poder público e usuários (art. 2º, inc. XXI, do PL 02/2015).

O parágrafo 8º do artigo 17 é mais um exemplo dessa exclusão que afronta a autonomia e o consentimento prévio dos “detentores” de conhecimentos tradicionais associados nas negociações de repartição de benefícios. Define que, nas relações comerciais das quais participam pessoas jurídicas estrangeiras (§§ 6º e 7º), na ausência de acesso a informações essenciais à determinação da base de cálculo de repartição de benefícios, “em tempo adequado”, a União arbitrará o valor da base de cálculo de acordo com a “melhor informação disponível”, considerando o percentual previsto na lei ou em acordo setorial, sendo garantido o contraditório.

A isenção das microempresas, de empresas de pequeno porte e microempreendedores individuais de repartir benefícios, proposta no parágrafo 5º do artigo 17 do PL 02/2015, tem provocado reações adversas dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil. Na Câmara dos Deputados, essa isenção foi estendida aos “agricultores tradicionais e suas cooperativas” com receita equiparada às microempresas e empresas de pequeno porte. Estabelece o parágrafo 6º do artigo 17 que, no caso dos “detentores” de conhecimento tradicional que forem “provedores” de pessoas jurídicas isentas da repartição de benefícios, nos termos do §5º, eles receberão benefícios por meio do Programa Nacional de Repartição de Benefícios (PNRB). Esse programa, instituído no artigo 33, não prevê modalidade monetária de repartição de benefícios.

Também ficam isentos da obrigação de repartir benefícios os usuários que exploram economicamente produto acabado ou material reprodutivo a partir da vigência desta lei e que realizaram acesso a patrimônio genético e conhecimento tradicional associado antes da edição da primeira medida provisória regulamentando a Convenção sobre Diversidade Biológica, em 29 de junho de 2000 (art. 17, §10) .

A regularização dos infratores, das sanções e da exigência de seu cumprimento

 

A proposta legislativa para a substituição da Medida Provisória n. 2.186-16/2001 facilita a regularização de infrações e o perdão de dívidas. Os infratores da MP, conforme o artigo 48 do PL 02/2015, podem se regularizar com a assinatura de Termo de Compromisso, que constitui título executivo extrajudicial, a exemplo dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC). Por meio da realização do cadastro e da autorização, os infratores punidos sob a MP tem sua punibilidade extinta, nos termos do artigo 38, §3º.

O artigo 43 autoriza o perdão da dívida correspondente às indenizações civis relacionadas ao patrimônio genético e a conhecimento tradicional associado das quais a União seja credora.

O projeto de lei, apesar de antiga demanda, não tipifica o crime de biopirataria, mantendo as infrações relativas ao acesso e uso de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados apenas como administrativas e não penais. A MP 2.186-16/2001, pelo seu status jurídico diante do princípio da legalidade, não pode criar um tipo penal, no entanto, a lei em sentido estrito poderia, mas isso não foi proposto.

A manifestação dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil

Associações e movimentos representativos de povos e comunidades tradicionais tem se mobilizado contra a aprovação da proposta governamental e das emendas que favorecem o setor empresarial e se apresentam contrárias aos interesses de povos e comunidades tradicionais, apresentando notas públicas e cartas de repúdio. Uma moção de repúdio às empresas firmada por dezenas de associações e movimentos foi divulgada em 18 de março.

Muitos dos dispositivos do PL 02/2015 criticados por essas representações políticas receberam emendas desde a sua tramitação no Senado.

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