Nova Cartografia Social Da Amazônia

Um Maranhense da Baixada percorrendo as trilhas da Bahia


por Franklin Plessmann de Carvalho

Entre os dias 19 de novembro e 5 de dezembro de 2016, Ednaldo Padilha, o Cabeça, realizou uma visita de intercâmbio na Bahia. Liderança da comunidade quilombola Camaputiua, Cajari/MA, e reconhecido defensor dos direitos humanos, Cabeça realizou atividades junto a rede de pesquisadores e movimentos sociais da Bahia que estão vinculadas ao Projeto Nova Cartografia Social. Destaco a participação no “V Seminário Estadual de Comunidades de Fundos e Fechos de Pasto da Bahia”, nas oficinas de Cartografia Social com a comunidade de Fecho de Pasto do Brejo Verde e do Povo Indígena Tupinambá da Serra do Padeiro. Cabeça também participou da Caminhada de 20 novembro, que saiu do Curuzu/ Liberdade e foi até o Pelourinho no centro de Salvador. Conheceu dois centros da Universidade Federal do Recôncavo e finalizando o intercâmbio participou das festividades de Santa Bárbara/Iansã, no dia 4 de dezembro.

Seminário Estadual de Comunidades de Fundo e Fechos de Pasto

Cabeça participou do “V Seminário Estadual de Comunidades de Fundos e Fechos de Pasto da Bahia”, realizado entre os dias 23 a 25 de novembro, no município de Correntina, localizado no oeste do Estado, à 916km de Salvador e 500km de Brasília. Neste seminário proferiu palestra sobre a análise de conjuntura e as ameaças aos modos de vida dos povos e comunidades tradicionais. Também participou ativamente da oficina “Terra e Território Tradicionalmente Ocupados”.

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Em sua palestra Cabeça abordou uma perspectiva sobre o golpe que sofremos no Brasil. Para ele o golpe deve ser compreendido na relação da conjuntura nacional e internacional, encarado como “um golpe contra o voto popular, um golpe contra os pequenos”. Relembrou que antigamente os povos e comunidades tradicionais – os quilombolas, as comunidades de fundo de pasto, os povos indígenas, os ribeirinhos, os pescadores, as quebradeiras de coco – tinham que se reunir escondidos e hoje passaram a se reunir abertamente na luta por seus direitos e que isso tem incomodado quem se acha dono do Brasil. Enfatizou a ratificação da convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) pelo Brasil em 2002, assinalando que qualquer ação que cause impacto em comunidades tradicionais deve ser referendada pelas mesmas através de uma consulta prévia, informada e de boa fé. Também mencionou o direito às terras tradicionalmente ocupadas, na qual:

o território tem que ser respeitado, tem que ser delimitado conforme o povo que nele vive, que dele tira o sustento. Não é mais o governo que tem que dizer qual a área que pertence a vocês… e assim o povo pequeno começou a se mexer, a participar de evento, fazendo as suas exigências”.

Para Cabeça o golpe seria a tentativa de acomodar esse povo todo, “para ver se ele se aquieta”. Portanto este golpe seria uma reação de políticos e empresários para desestabilizar os direitos de povos e comunidades tradicionais, pois estão interessados nas terras tradicionalmente ocupadas. Relembrou algumas estratégias utilizadas pelos latifundiários para a grilagem das terras e a criminalização de quem luta para defendê-las. Relembrou que desde Zumbi dos Palmares a Negro Cosme, liderança quilombola do Maranhão, que se ameaça a vida de quem luta, e muitas vezes partem para o assassinato como uma tentativa de enfraquecer a resistência. Citou a perda de seu irmão, assassinado por pistoleiros. Disse que pensou em recuar, mas percebeu que ele tinha que intensificar a luta, pois:

além do sangue de Zumbi, além do sangue de Nego Cosme, muito mais perto de mim, eu tenho o sangue do meu irmão que foi derramado por causa da luta”.

Contou sua viagem ao Quênia e como ficou impressionado com a proximidade das lutas, a semelhança a ameaça aos modos de vida, a redução da área tradicionalmente ocupada:

Eu vejo que a mesma realidade da minha comunidade, é a mesma realidade lá do Quênia, é a mesma realidade do Pará, é a mesma realidade do Tocantins e de vários outros estados, tem tudo a mesma realidade, só muda o nome de como a gente está se identificando, mas a luta não muda, é a mesminha”.

Por fim refletiu como os movimentos sociais se acomodaram perante o “governo popular”:

O que foi que nós fizemos? Cruzamos os braços e começamos a sacudir a perna e esperar. Agora vem, é o governo do povo, agora vem, vamos se embalar na rede e esperar chegar… não foi assim que a gente fez? Ou eu estou mentindo? A gente se calou, a gente se acomodou… Mas agora com o golpe, aí a gente que estava se embalando numa rede, dormindo, se espantou porque a corda da rede quebrou.”

Também mencionou a eleição dos EUA e o susto que está causando. Mencionou um diálogo com um irmão queniano, do povo Endorois dizendo que ele via o Brasil como esperança, que estava contando com o apoio do Brasil e ao chegar no Brasil se deparou com uma bagunça sem tamanho. Cabeça, também preocupado com eleição do Trump, pois na visita que fez ao Quênia percebeu que Obama dava uma espécie de apoio ao país, até por sua família ser parte do Quênia. Cabeça contou o que disse ao colega do Quênia:

Meu irmão, tá bagunça mas o povo vai começar a ajeitar. Pois essa bagunça só aconteceu porque o povo estava dormindo. Mas o povo vai acordar, o nosso povo vai acordar”.

Lembrou do movimento estudantil ocupando as escolas e universidades, sugerindo que o caminho é ocupar o espaço público para a reivindicação de direitos, a necessidade de mobilização, ressaltando que:

Seminários deste porte, com essa natureza, é mais uma forma de acordar, é mais uma resistência dessa situação que está aí. Era assim antes do governo popular, era assim que agente fazia. Mas no governo popular a gente foi deixando de se encontrar, de debater, e ficou no que está. Mas se tem a receita: vamos nos dar as mãos. Quem vai ter que dar as mãos? São só fundos e fechos de pasto? Não. Tem que se dar a mão o indígena, o quilombola, o ribeirinho, a quebradeira, aqueles que ainda não se definem de alguma forma mas também estão sendo prejudicados, estão incomodados. Todos temos que fazer uma só corrente e dizer o que queremos… Devemos confiar em cada um de nós, devemos refletir, cantar, celebrar. Cantar é importante para fortalecer a luta… Devemos nos unir mais, a dar as mãos mais ainda, unificar as lutas, unificar a luta pela terra, a luta pela água, a luta por um ambiente equilibrado… não queremos a terra improdutiva, queremos a terra produtiva, por que não nos adianta nos dar a terra improdutiva, nós queremos a terra produtiva, por isso vamos unificar as lutas e vamos perder o medo de morrer, porque um dia a gente tem que morrer, de uma forma ou de outra a gente tem de morrer, a morte tá aí, não tem jeito, não tem como nós escaparmos dela. Então vamos criar coragem e vamos começar a enfrentar.”

Finalizou a palestra com uma pergunta:

Quem libertou os escravos? Princesa Isabel? Olha só, isso é o que eles botaram na cabeça da gente, é o que eles nos catequizaram… mas é muita mentira. É muita mentira o que foi escrito. Quem libertou os escravos foi a união, os conhecimentos tradicionais da religiosidade, dos poderes, do convívio com a natureza. Desde Zumbi, que morreu lutando pela liberdade e disseram que era bandido, estavam forçando, os negros fugiam das senzalas, faziam suas moradas nas beiras dos rios, nos lugares de encantoria, forçando ter uma lei para libertar os escravos. Já existia muito escravo solto que se juntaram aos povos indígenas e começavam a saquear as fazendas. Levar arma, levar comida para os quilombos, os mucambos. Aí o pai da princesa Isabel fez uma lei, mas não teve coragem de assinar. Aí a princesa Isabel disse que tinha que ser boazinha para estes pretos, esses pretos tem que me aplaudir. Então ela assinou, e ela só assinou, ela nem fez a lei, ela apenas assinou a lei Áurea. Mas a maior parte da pretalhada já estava liberta, por si própria. Então não foi essa tal de lei Áurea que libertou os escravos, foi a união e a força. Sim, eu estou chamando vocês também para essa união, essa força de libertação, libertação, libertação, libertação…”

 

Oficinas de Nova Cartografia Social

Cabeça participou de atividades referentes a elaboração de novas cartografias sociais em duas situações distintas. A primeira é referente a comunidade de fecho de pasto Brejo Verde e a segunda do povo indígena Tupinambá de Serra do Padeiro.

Em Brejo Verde, além da oficina de cartografia, acompanhou uma reunião da comunidade com a secretaria de meio ambiente do Estado da Bahia, participou do mutirão para construção da cerca de proteção às nascentes dos córregos que alimentam a comunidade e assistiu a sessão de documentários sobre a cultura do reisado da comunidade de fecho de pasto Salto.

Com o povo indígena Tupinambá participou de uma conversa com os troncos familiares sobre a construção da nova cartografia social dos Tupinambá, uma oficina preliminar organizada pela pesquisadora Helen Catalina com o grupo de jovens, fez visita às áreas de encantamento e participou de atividades religiosas. Cabe destacar que o “Caboclo Tupimanbá” é uma referência para a comunidade quilombola de Camaputiua.

Em ambas situações Cabeça apresentou como a participação da comunidade quilombola Camaputiua na rede de pesquisadores e movimentos sociais do Projeto Nova Cartografia Social motivou o grupo a investigar seus direitos, sua história, sua territorialidade. Cabeça apresentou que no início queriam fazer um fascículo para assegurar apenas uma pequena parte do território, que correspondia a área não inundada durante as cheias (+/- 350ha). Depois viram a necessidade de incluir as áreas alagadas (+/- 1.000ha). Finalmente perceberam que a luta de Camaputiua era compartilhada por outras localidades vizinhas, identificando um território comum, muito mais amplo. Destacou que até hoje ainda não publicaram o fascículo, mas construíram mapas, escreveram um livro, estão construindo um centro de saberes. Também contou que um pesquisador nascido na comunidade, Dorival dos Santos, publicou uma dissertação de mestrado falando sobre a identidade étnica e territorialidade quilombola de Camaputiua. Mostrou que a Nova Cartografia Social vai muito além de fazer um mapa, sendo uma forma de dar visibilidade para perspectiva que as comunidades têm do seu modo de vida e das lutas na qual estão inseridos.

Outras atividades

Além das atividades previamente programadas, Cabeça aproveitou para visitar o Centro de Artes e Humanidades e Letras (CAHL) e o Centro de Formação de Professores (CFP) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). No CFP participou de atividades realizadas durante a Conferência Negritude e Educação (CONE), com destaque para uma celebração realizada por Mametu Kafurenga e Tata Sobode, lideranças religiosas da nação Bantu do sul da Bahia. Também participou de um samba comandado por professor Lucas Maia, em apoio a ocupação da universidade pelos estudantes.

Em Salvador participou de duas atividades. A primeira foi a 16ª caminhada da liberdade, ocorrida no dia 20 de novembro. Na concentração na sede do Ilê Aiyê, no Curuzu, foi recebido pelo presidente do Ilê, o conhecido Vovô do Ilê, Antônio Carlos dos Santos, que mostrou a Cabeça as instalações da sede da organização. Depois participou da caminhada entre o Bairro da Liberdade e o Pelourinho, mostrando muita animação que não arrefeceu nem com a grande chuva que caiu durante o percurso.

A segunda atividade em Salvador foi a participação na procissão em homenagem a Santa Bárbara/Iansã no dia 4 de dezembro. Com a companhia da pesquisadora maranhense Genny Ayres, assistiu a celebração religiosa feita na frente da igreja Nossa Senhora dos Pretos. Depois acompanhou toda a procissão que andou pelas ruas do centro histórico, passando pelo mercado de Santa Bárbara na Baixa do Sapateiro, e retornado a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. Também participou de um caruru organizado por comerciantes do centro de Salvador, encontrando militantes do movimento negro.

Avaliando o Intercâmbio

Só pelas atividades desenvolvidas e aqui já relatadas poderíamos concluir que foi excelente a presença de Cabeça junto a rede de pesquisadores e movimentos sociais ligados ao Projeto Nova Cartografia Social aqui da Bahia. Mas a importância deste intercâmbio foi além das atividades formais. As conversas com lideranças dos movimentos de fundo e fecho de pasto, povo Tupinambá, lideranças religiosas, movimento negro acentuaram a necessidade de uma permanente troca de experiências. Também destaco a aproximação de Cabeça com os jovens pesquisadores, fortalecendo a rede aqui em formação. Aproveito então para agradecer publicamente a disposição de Cabeça em ter participado deste intercâmbio, partilhando conhecimentos de sua trajetória, elaborando reflexões sobre as formas de resistência e disposto a compreender as lutas aqui desenvolvidas. Sua passagem por aqui nos inspirou bastante. Que a união entre as lutas possam estar sintonizadas na conquista da liberdade tão desejada por Cabeça. Axé!!!

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